Alexei Bueno
Poeta, ensaísta, editor e tradutor

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Sobre Um Livro De Contos*

Os gêneros literários são mistérios, como as nações, para recordarmos o verso brilhantemente aforismático do Fernando Pessoa de Mensagem. Como acontece com as formas fixas na poesia, todas parecem haver surgido de uma necessidade anterior, platônica, como oriunda do inapreensível mundo das idéias puras. Se há formas fixas de evidente artificialismo – a sextina, por exemplo –, como explicar a milagrosa necessidade, necessidade de existir, que encontramos num soneto, numa oitava heróica, na terza rima, ou para ir ao outro lado do mundo, num haicai? Por isso a vacuidade algo ridícula dos ataques às formas fixas em si mesmas nos momentos de subversão literária, quase sempre na saudável tentativa de libertá-las da crosta dos maneirismos e das modas. O problema é que as formas nada têm a ver com as modas e os maneirismos com que os maus poetas e os maus prosadores as cumulam nos momentos de decadência literária. Elas retornam sempre, com uma juventude auroral que as acompanha desde sua gênese secular.
Se o romance, indubitavelmente, assumiu o primeiro plano entre os gêneros literários da prosa narrativa na idade moderna, a especificidade das outras formas, a novela e ainda mais marcadamente o conto, garante-lhes essa necessidade inexplicável sobre a qual acabamos de falar em relações às formas poéticas. Como estender a trama, aumentar o número de personagens, aprofundar o psicologismo na relação entre os mesmos, sem destruir uma mínima e insubstituível maravilha como é – um exemplo perfeitamente aleatório, entre milhares – um conto como “O barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe?
Há autores em que se nota, independentemente de variadas e às vezes culminantes realizações em outros gêneros literários, o que podemos chamar do gênio da narrativa curta, a implacável vocação ao conto, como, entre nós, um Machado de Assis, um Monteiro Lobato, um Hugo de Carvalho Ramos, um Guimarães Rosa, ou, entre os estrangeiros, o já lembrado Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant, Stevenson, Tchekhov, Kipling, Gorki, Horacio Quiroga, Panait Istrati, Isaac Babel, Jorge Luis Borges, Miguel Torga ou Juan Rulfo.

Como a dominância classificatória de um dos gêneros literários é quase uma necessidade do público em relação aos autores, até mesmo no caso dos polígrafos, é preciso lembrar que todos conhecíamos Fernando Fiorese, acima de tudo, como poeta, sem esquecer do ensaísta do excelente Trem e cinema: Buster Keaton on the railroad. Com o aparecimento do livro hoje lançado, Aconselho-te crueldade, a questão passa a ser mais melindrosa, pois ele nos surge como um requintado contista, nas várias vertentes que, por sua vez, podemos encontrar no gênero.

Conto magistral, exemplo tout court do que tentamos definir acima como o conto em sua essência mais pura, é a narrativa “Era uma boneca”. A prosa de Fernando Fiorese adquire, nessa pequena obra-prima, um tom mais coloquial, claramente explicado pela ambiência cotidianamente banal em que tudo se passa, assim como no fato do papel do narrador estar entregue a uma figura infantil, arauto de uma coletividade infantil numerosa. Se o ambiente é cotidianamente banal, o fato detonador do pathos do conto não deveria sê-lo de maneira alguma, mas, na verdade, chega quase a sê-lo entre nós. Compreendo perfeitamente que estou escrevendo frases obscuras e sibilinas, que ninguém entenderá, mas o meu objetivo é exatamente este, pois não quero desvelar o cerne dessa narrativa.

Se “Era uma boneca” me parece um exemplo acabado do conto em sua essência, “A tempestade” se encontra na fronteira do poema em prosa, gênero de muito complexa definição, que vez por outra é tangenciado pelo conto, ou o tangencia. A prosa do autor, nesse caso, muda completamente de registro, mantendo a mesmíssima eficácia. Trata-se de uma prosa muito requintada – o coloquialismo desapareceu – a tal ponto que é difícil não julgar a obra, por sua extrema concisão e acuidade, um poema.

Já em “Um nome e os óculos” há como que uma fusão entre as duas tendências. Começando por uma análise muito aberta da psicologia feminina, ou do que algumas ou muitas mulheres julgariam como tal, a narrativa se move do geral em direção ao particular, conduzindo a um final surpreendente. A prosa do autor, do mesmo modo, como que se equilibra sobre uma corda suspensa entre as duas maneiras que acabamos de comentar, o registro mais terra a terra das coisas e a visão aguda, sintética – poética, portanto – da essência profunda do que se apresenta gradativamente desde as primeiras palavras, através de uma narradora que também se aclara paulatinamente.

Falamos de três contos apenas, que representam três estilos de contos, no universo do livro, todos vazados na mesma brilhante prosa do artista aqui presente. E julgamos que três – número místico por excelência, em todas as religiões e visões do mundo - é um número suficiente e exato, pois o que importa é a silenciosa percepção e fruição de cada leitor.

(*) Texto da apresentação de Aconselho-te crueldade, proferida por Alexei Bueno em Juiz de Fora (MG) no lançamento do livro de contos de Fernando Fiorese, realizado no Museu de Arte Murilo Mendes no dia 09 de setembro de 2010.


ERA UMA BONECA

Fernando Fiorese

Era uma boneca, mas estava apodrecendo. Era um segredo, mas o Paulo Preto, do alto de seus 13 anos, disse que não durava mais que um dia. Enquanto isso, a gente podia fazer dela brinquedo, desde que às escondidas. Contar apenas para os mais chegados, para os que não davam com a língua nos dentes nem se borravam de medo dessas coisas. Para o Tuca nem pensar, que ele tinha uma irmã muito especula e que vivia atrás dele. Para o Fabrício também não. Vai que a mãe dele resolve dar uma incerta por ali, como fez na última enchente e dedurou todo mundo que estava pulando da ponte. Para o Beiçola menos ainda. Lembra quando a gente

foi dissecar aquele morcego? Ele vomitou até as tripas e deu um trabalho danado.
O segredo durou muito mais do que previu o Paulo Preto. Por pudor, já que todos, uns mais outros menos, brincaram com a boneca – e menino algum ia passar a vergonha de confessar coisa de menina. Não que a brincadeira fosse igual. Ninguém ficava dando de mamar ou trocando fraldinha, mas apanhamos o Nelsinho meio que penteando os poucos fios de cabelo da boneca. Ninguém pegou pesado porque nenhum de nós sabia mesmo o que fazer direito com aquele tipo de brinquedo. Hoje eu acho que a brincadeira ali não era a boneca propriamente dita, mas o segredo. E menino brinca com segredo melhor do que menina brinca com boneca. Ao menos eu pensava assim – até que o Porrinha trouxe o Alfeu mais o Edilton e o Pedro contou para o Julinho e o Sávio chegou com o Nando a tiracolo e o Dudu admitiu que tinha falado para uns primos de Recreio que passaram pela casa dele indo para Miracema e o Guto disse do nosso achado ao irmão caçula do Cícero da dona Arlete e o próprio Cícero ouviu e foi lá ver que coisa era aquela e não achou nada de extraordinário. Mas prometeu segredo.

Em menos de dois dias, a meia dúzia de moleques se transformou em multidão. Não tinha como não levantar suspeita aquele entra-e-sai no terreno baldio em frente à máquina-de-arroz. Não poucos saíram da aula e deram uma passadinha lá só para ver como as coisas estavam. Mais tarde, fazendo alguma obrigação na rua, outra passadinha – e ficaram um tempão enrolando por ali. Acaba que tiveram de inventar um monte de mentiras em casa. O problema é que as mães conversam, contam as últimas dos filhos – e logo, logo estavam apertando a gente para saber o porquê da demora para voltar da aula, para levar um recado na Beira-Linha, para comprar um pãozinho que fosse na esquina. Como eu, tem quem minta tão bem que acaba ele mesmo acreditando na mentira, mas outros se atrapalhavam tanto tanto que não demorou e todo mundo estava desconfiado. “Alguma coisa esses merdas devem estar aprontando. E boa coisa não é.” Daí não custou muito para ter um bando de pai, mãe, tia, avô e madrinha com olho de polícia em cima da gente. Redobramos os cuidados, mas era questão de dias ou horas até que o nosso segredo ganhasse as ruas.

Sem que fosse preciso qualquer recomendação ou ajuste, começamos por maneirar as idas e vindas ao terreno baldio, evitando chegar em grupo ou fazer algazarra e organizando a ordem de saída conforme a rua estivesse mais vazia. Mas era também preciso fazer crer aos adultos que aquelas nossas visitas tinham um fim mais banal: acordamos que cada um tinha que sair de lá com as mãos e os bolsos entornando de mamonas. Munição contra os moleques da Brasilinha. Era o óbvio, mas foi o que nos ocorreu no momento, uma vez que as nossas refregas na rua dos Burros há muito corriam a cidade. Além disso, cada qual tratou de inventar outros tantos estratagemas próprios para driblar pai, mãe, irmão mais velho e quem mais estivesse vigiando a gente. Tudo feito com o único fito de segurar um segredo que já fugia de nossas mãos. 

No terceiro dia, ninguém mais se aproximava da boneca. Ficávamos de longe, ela enrolada nos trapinhos que arranjamos. O cheiro era insuportável. Então, nos contentava ficar espiando aqueles olhos grandes e verdes e parados em algum lugar. Uma coisa minúscula escondida entre os pés de mamona que agora faziam as vezes de trincheira para o nosso segredo. Era uma boneca, embora o vermelho do rosto tivesse desaparecido ainda no primeiro dia, embora as articulações dos braços e pernas estivessem emperradas. Era uma boneca, mas estava apodrecendo. E alguma coisa me dizia que aquele cheiro medonho é que daria um fim ao segredo que defendíamos com unhas e dentes.

Eu estava inteiramente enganado. Não foi o fedor nem a nossa movimentação que acabou por estragar o segredo, mas a loucura súbita e mansa da Minervina. De uma hora para outra, sem qualquer anúncio prévio, a empregada da dona Rosa do seu Odyr Pedra começou a catar as bonecas das meninas da casa e trocar fraldinha e embalar com boi-da-cara-preta e dar de mamar nuns peitos tão fartos, tão estufados de leite, que logo, logo a patroa tinha certeza de que alguma coisa de muito grave estava acontecendo. A doideira da Minervina ia e voltava – e foi numa dessas que o seu Odyr Pedra fez a pobre confessar tudo, afora quem o autor do mal-feito. Quando a polícia chegou para levá-la às barras da justiça, como disse o meu pai e eu achei muito bonito, o segredo estava acabado. Ao menos para nós, os meninos.


FERNANDO FIORESE (Brasil, 1972)

Poeta y cuentista. Ha publicado Leia, não é cartomante; Exercísios de vertigem & outros poemas; Corpo portátil; Diciónario mínimo; Aconselho-te crueldade.

Contacto fernando.fiorese@acessa.com.br

 

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